Papel do incentivo na promoção de acção colectiva

Introdução

O presente trabalho visa analisar de forma sucinta três questões fundamentais:
1) Os seres humanos são naturalmente egoístas e individualistas ou agem em prol do interesse colectivo?
2) Como conciliar o interesse individual com o interesse colectivo?
3) Qual o papel dos incentivos na promoção de acção colectiva?
Para a análise destas questões, socorremo-nos essencialmente de duas abordagens teóricas: por um lado, a abordagem convencional, fundamentada no princípio do homo economicus racional e maximizador de utilidades, que defende a necessidade da intervenção externa (incentivos) para a resolução do problema de acção colectiva; e por outro lado, a abordagem da reciprocidade, que parte do pressuposto de que os indivíduos estão dispostos a contribuir em função da manifestação da disponibilidade dos outros em contribuir para a mesma acção colectiva e defende a promoção da confiança como solução do problema da acção colectiva.

Como atrás ficou dito, as questões formuladas buscarão respostas na abordagem convencional e na abordagem da reciprocidade, pelo que passamos de seguida a análise de cada uma destas teorias.

Teoria convencional

Na perspectiva da teoria convencional, os seres humanos são naturalmente egoístas, calculistas, individualistas e agem unicamente de acordo com o seu interesse pessoal. Esta abordagem parte do princípio de que os indivíduos apenas se integram espontaneamente numa acção colectiva, quando ela lhes dá uma vantagem própria, os indivíduos apenas participam na acção colectiva quando podem dela retirar vantagens específicas ou quando a não participação dá origem a sanções.
À luz desta teoria, o homem é um animal racional e calculista que actua sempre de forma proporcional à recompensa esperada e não está disponível para resolver o problema de acção colectiva de forma voluntaria.
A visão convencional assume que não se deve esperar que os indivíduos actuem espontaneamente em conformidade com o interesse colectivo mesmo quando esse interesse é partilhado. Ele tem que ser estimulado, ou melhor, tem de haver uma motivação extrínseca - motivação baseada numa recompensa, ou numa tentativa de evitar um castigo, ou seja, quando exercemos uma determinada actividade devido a uma razão que pouco tem a ver com a própria actividade em si- em oposição a motivação intrínseca - tendência natural de procurar e vencer desafios à medida que perseguimos interesses pessoais e exercemos aptidões, sendo que não são necessárias recompensas para prosseguirmos a actividade, já que esta é recompensadora em si mesma. Esta última foi definida por James Raffini como “o que nos motiva a fazer algo quando não temos de fazer nada”.
Não é fácil distinguir uma motivação da outra, observando apenas o comportamento do indivíduo. A diferença essencial está na razão do indivíduo para agir. A motivação é intrínseca se a razão vier de dentro da pessoa, extrínseca se vier de fora. Muitas vezes, podemo-nos sentir tentados a assumir que um determinado comportamento é motivado intrínseca ou extrinsecamente, sendo que na maioria das vezes a motivação é intermediária, como no caso em que a pessoa internaliza uma causa externa, ou seja, quando toma como suas razões que inicialmente lhe eram externas.

A teoria convencional assume que, para conciliar o interesse individual, egoísta com o interesse colectivo é necessário que haja uma intervenção externa – um incentivo - uma alteração do enquadramento externo que o agente enfrenta, na maior parte das vezes através da utilização deliberada de prémios e de penalizações, tendo em vista modificar o cálculo individual dos custos e dos benefícios das diferentes alternativas de escolha, de forma a dirigir o comportamento ou a acção individual guiados por motivações egoístas para os fins desejados pela comunidade.
Os incentivos são mais eficazes que a coerção, quer do ponto de vista económico, porque permitem reduzir os custos de transacção, quer do ponto de vista ético, porque dão maior liberdade, maior espaço para a autonomia e a escolha individual, valores que são fundamentais numa sociedade.
De acordo com esta perspectiva, quando os incentivos são empregues, não há necessidade de convencer os indivíduos que os objectivos colectivos são bons, por um lado e, por outro, pode-se contornar as escolhas pessoais sem necessidade de discussão pública.
Num contexto de acção colectiva e na ausência de incentivos, os indivíduos procuram ir a boleia da contribuição dos outros, ou seja, adoptam um comportamento do tipo “free ride”, esperando que os outros façam, e neste sentido, poucos contribuem, efectivamente, para o bem colectivo e o interesse do grupo não será concretizado.
Neste sentido, a teoria convencional vê o incentivo como solução do problema de acção colectiva, porque o interesse do indivíduo e o interesse colectivo são incompatíveis, isto porque o indivíduo tende a estar unicamente preocupado em maximizar a sua riqueza, o seu lucro e benefício, não se podendo, por isso, contar com ele para contribuir de modo espontâneo para o objectivo colectivo.
Segundo a visão convencional, na ausência de incentivos, existe apenas uma estratégia racional, que é a não contribuição e um único equilíbrio que é a ausência de cooperação. Por isso, defende o uso judicioso dos incentivos para alinhar o interesse individual com o interesse colectivo, uma vez que não existe cooperação voluntária.
Mas, esta visão convencional do comportamento e da acção humana tem vindo a ser contestada. Vários estudos empíricos comprovam que no contexto de acção colectiva os indivíduos nem sempre adoptam uma postura calculista, egoísta, mas sim, agem emocionalmente, em função da acção dos outros a sua volta. Nesta perspectiva, a acção colectiva depende mais da confiança do que dos incentivos externos.

Teoria da reciprocidade

À luz da teoria da reciprocidade, os indivíduos não adoptam uma postura materialmente calculista, mas sim, tendem a agir emocionalmente em função da acção dos outros. Isto é reciprocidade. Se o indivíduo percebe que outros a sua volta estão a cooperar, tende igualmente a cooperar para o objectivo colectivo, se pelo contrário, aperceber que outros a sua volta não estão a cooperar, tem a tendência de também adoptar o mesmo tipo de comportamento, de modo a evitar ser explorado.
A reciprocidade pode ser forte - disposição para contribuir mesmo quando não existe uma transacção recorrente com outro identificável, mas essa transacção é condicionada pela contribuição dos outros, ou fraca - quando as transacções com um agente identificável são recorrentes e em circunstâncias em que cada um pode monitorizar o comportamento do outro.
Na base da reciprocidade, o indivíduo contribui para a acção colectiva se acreditar que outros ao seu redor também estão inclinados a contribuir. Neste contexto, não há nenhuma estratégia individual dominante, o factor determinante para a promoção da acção colectiva é a confiança. Quanto maior for a confiança que o individuo tem na boa vontade dos outros para contribuir, mais facilmente contribui de forma espontânea, voluntária para o objectivo colectivo, sem necessidade de introdução de incentivo externo. Ao contrário, se o indivíduo desconfiar da boa vontade dos outros, tende a mostrar maior resistência em contribuir para acção a colectiva e, no quadro de desconfiança, mesmo a introdução de um forte incentivo pode ser ineficaz para promover a acção colectiva.
Vários estudos empíricos mostraram que a boa vontade do indivíduo de contribuir para a acção colectiva é altamente condicionada pela percepção que ele tem da boa vontade dos outros para participar na mesma acção. Isto é, se os indivíduos forem levados a acreditar que os outros estão inclinados a contribuir para o objectivo colectivo, serão induzidos a contribuir também, mesmo sem recurso ao incentivo. Para tal, a comunicação e o sentimento de justiça são factores críticos, na medida em que o indivíduo tende a certificar-se do comportamento dos outros e a assegurar que os seus esforços estão a ser efectivamente canalizados para o objectivo colectivo e que não há nenhum aproveitamento individual da acção. Pode-se tomar como exemplo a contribuição para uma obra de caridade- o caso Madie, a menina desaparecida no Algarve: inicialmente houve uma grande mobilização popular no sentido de contribuir para o fundo que se criou na altura para a localização da menina, mas a medida que a população foi se apercebendo que essa contribuição estava a ser mal gerida e sobretudo que se destinava a pagar somas avultadíssimas ao advogado britânico, e que se foi divulgando a tese de que os pais poderiam estar envolvidos no desaparecimento da menina, a contribuição baixou significativamente porque as pessoas deixaram de acreditar no caso.
Ao contrário da teoria convencional, que parte do pressuposto de que a disposição para “free ride” em acção colectiva é uniforme e generalizada, a teoria de reciprocidade defende que a disposição para cooperar varia entre indivíduos, e que apenas uma pequena fracção da população tende a adoptar um comportamento do tipo “free ride”, sendo que a grande maioria da população são reciprocadores, ou seja, cooperam em função da boa vontade dos outros para cooperar.
Os reciprocadores podem ser relativamente intolerantes – os que deixam de cooperar assim que se apercebem que a cooperação é baixa, o que desencadeia uma sucessão de comportamentos não cooperantes dos indivíduos com maior grau de tolerância; relativamente tolerantes – os que continuam a contribuir mesmo quando percebem que a cooperação é fraca, e reciprocadores neutrais – os que estão situados mais ou menos entre os dois tipos de reciprocadores acima citados.
Implicações do incentivo na promoção da acção colectiva

O efeito de intervenção externa não é linear como defendia a teoria convencional. Ela pode ter efeitos paradoxais, perversos, ou seja, a intervenção externa pode “crowd-out” (inibir), ou “crowd-in” (estimular) a motivação intrínseca.
A simples existência de incentivo pode ser um sinal de que os outros indivíduos não estão inclinados para contribuir, pode significar que os outros não estão dispostos para cooperar voluntariamente, pode ser um sinal de pouco envolvimento, de pouco compromisso dos indivíduos em contribuir para a acção colectiva.
A introdução de incentivo para promoção da acção colectiva não permite aferir-se do grau de disponibilidade, de espontaneidade, da natureza voluntaria dos indivíduos para contribuir para uma determinada acção colectiva porque deixa entender que os indivíduos só estão a participar devido a introdução do incentivo.
A recompensa, em particular a recompensa monetária pode inibir a motivação intrínseca, pode eliminar o afecto social, o valor e pode reduzir ou até mesmo eliminar a disposição e/ou a vontade do indivíduo de contribuir para acção colectiva.
O incentivo pode “crowd-out”, cortar, inibir a disposição para o altruísmo, a oportunidade de o indivíduo demonstrar que está disposto a sacrificar o ganho material individual por um objectivo colectivo.
A influência do incentivo externo pode “crowd-out”, enfraquecer a auto-determinação do indivíduo, se ele perceber ou entender que essa intervenção reduz a sua autonomia, a sua independência, se ele vê essa intervenção como forma de controlo sobre a sua motivação intrínseca, se ele for forçado a comportar-se de acordo com a intervenção externa. A intervenção externa pode também “crowd-out” a auto-estima do indivíduo, se transportar consigo a noção de que a motivação do indivíduo não é reconhecida, se o indivíduo sentir que a sua motivação intrínseca é rejeitada, se o indivíduo sentir que o seu envolvimento e a sua competência são rejeitados. A introdução de incentivos externos pode ser igualmente negativa quando a relação não monetária é transformada em relação monetária.
Contudo, é um erro concluir que a introdução de incentivo produz invariavelmente a perda de confiança. Nem sempre essa introdução é má. Depende do grau e do nível de confiança. Ou seja, se a confiança é alta e os indivíduos têm a percepção que muitos outros estão dispostos a contribuir, a introdução de incentivo é negativa porque os indivíduos passam a saber que nem todos os outros estão disponíveis para contribuir e isso pode leva-los a retrair a sua participação. Mas se o grau de confiança for baixo, se os indivíduos tiverem a percepção de que muitos outros estão inclinados a adoptar um comportamento do tipo “free ride”, a introdução do incentivo pode ser positiva, não tanto porque muda o bem-estar material do indivíduo, mas porque cria a expectativa de que a contribuição dos outros vai aumentar, muda a percepção, a impressão sobre o comportamento dos outros indivíduos. Leva-o a crer que o envolvimento e/ ou a participação serão maiores.
A intervenção externa pode “crowd-in”, estimular a motivação intrínseca, se os indivíduos perceberem que aquela vai de encontro aos seus interesses, pois neste caso, fomenta a sua auto-estima e o indivíduo sente que lhe é dada mais liberdade para agir, alargando a sua auto-estima.
Exemplo prático: Todos indivíduos têm a liberdade e a possibilidade de contribuir ou não para reciclagem dos lixos.
Há alguns anos atrás, poucos eram aqueles que se preocupavam com a reciclagem. Hoje, a grande maioria da população tem essa preocupação de separar os lixos em casa e deposita-los em separado nos ecopontos.
A medida que os indivíduos se foram apercebendo que os outros indivíduos estavam a contribuir para a reciclagem do lixo e para a preservação do ambiente, foi aumentando o número de pessoas a contribuir para essa acção. Ou seja, a medida que foi aumentando a confiança de que esse comportamento estaria a contribuir para a redução do impacto ambiental e para o bem-estar do colectivo, foi aumentando o número de indivíduos com preocupação ambiental. O indivíduo passou a sentir quase que um dever ou uma obrigação moral de contribuir para a preservação do ambiente. Mas, se pelo contrário, se tivessem apercebido que os outros não estavam dispostos a contribuir para a reciclagem e para a preservação do ambiente, provavelmente também não estariam disponíveis para contribuir ou o esforço seria menor.
Para essa consciência ambiental foi necessária uma motivação intermediária, através de campanhas de sensibilização, de informação e de aproximação da população, e alguma motivação intrínseca, que é a boa vontade dos próprios indivíduos de contribuir. Provavelmente se os mesmos indivíduos fossem sujeitos a uma motivação extrínseca, ou se fossem obrigados, coagidos a contribuir, eventualmente não estariam tão disponíveis a participar na reciclagem do lixo e na preservação do ambiente.
Os indivíduos podiam interpretar como sendo uma invasão, uma interferência externa ao seu comportamento e entender que nem todos estão efectivamente preocupados e disponíveis para contribuir para a protecção do ambiente.











Conclusão

Na sociedade, nem todos os indivíduos são “free ride”, sendo que a maior parte deles está disposta a contribuir desde que um número significativo de outros indivíduos também o faça. Nesta perspectiva, a acção colectiva depende mais da confiança do que dos incentivos externos. Para promover a confiança e consequentemente, a acção colectiva, a comunicação e a justiça são factores fundamentais, ao passo que o incentivo como forma de resolver o problema de acção colectiva, pode dissipar essa mesma confiança. Mas isso não significa que a introdução de incentivo seja má por si só. Por exemplo, para se alcançar o máximo nível de cooperação, provavelmente será necessário associar à reciprocidade dinâmica um incentivo apropriado, mais provavelmente na forma de punição ou de multa, sobretudo, em situações em que os indivíduos tendem a adoptar de
forma persistente um comportamento do tipo “free ride”.

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